segunda-feira, 19 de outubro de 2020

The one that got away

Patamar de um dos blocos de salas de aulas no liceu. 16 anos. Concerto da banda de alguns alunos, de que todos eramos fãs, obviamente. Um elemento estranho está lá para documentar o evento, atrás de uma câmara de vídeo. E é este o momento em que o amor começa a lixar-me a vida.

Apaixonei-me de uma hora para a outra por uma pessoa que nem sabia que eu existia. E que me ignorou todo o tempo que pôde, apesar de eu fazer questão de lhe entrar pela vida dentro sem pedir licença. Num estilo "stalker-ish" até. E andei nisto durante seis anos, numa obsessão paralisante. Seis anos, true story. Há coisas que eu fiz por esta pessoa que me fazem ter pena de miúda que eu fui. Teria tanto para lhe dizer hoje! Acreditava piamente que ele era o amor da minha vida, que um dia ele ia perceber isso, que o ia salvar dos fantasmas dele... ah, sim, sou essa miúda que acha que vai mudar o mundo de alguém e que cai redonda por almas atormentadas! Pintei-o como um deus e o que consegui foi que duas das minhas melhores amigas se apaixonassem por ele também! Duas, em alturas diferentes da vida. Sofri como nunca mais e destruí a fantasia de amor da vida. Rebentei-me em lágrimas, fechei a miúda num sótão, jurei nunca mais correr atrás de ninguém e fingi ser adulta a partir daí.

Os homens que me aconteceram entretanto nunca tiveram hipótese de compensar isto. Amei-os de verdade, sim, mas vivi a dar sem esperar receber, e no fundo usei alguma da estabilidade emocional que daí tirava para me organizar, para cumprir objetivos de vida. Transplantei partes do meu coração para três novas vidas, únicos amores incondicionais possíveis, mas falta-me alguma coisa. E é minha responsabilidade nunca ter exigido, procurado, achado que merecia. Não corro atrás, e essa cicatriz prendeu-me ao chão.

Na verdade, nunca consegui deixar de ser aquela miúda de 16 anos. Do sótão ela conseguiu sempre espreitar as estrelas e sabia que eu a ia buscar um dia. Sou 90% coração, não há cura. Sou alma que precisa de sentir intensamente com uma frequência diária. Que se alimenta de arrepios, de música alta, de soluçar, de amor, do prazer e da dor...  tudo em doses catastróficas. É aceitar isto.

Banda sonora

domingo, 18 de outubro de 2020

Alice e Toni


 Alice e Toni

Talvez nunca se tenham cruzado na vida mas decidiram ir embora na mesma semana.

Alice, ou Marina como muitos lhe chamavam, tinha 35 anos, era enfermeira no serviço de doenças infecciosas no maior hospital do Porto. Em tempos de guerra, sem um abraço possivel sequer, não aguentou. Não é a primeira. As pessoas que numa pandemia são mais essenciais estão a morrer. De cansaço, de tristeza, de desilusão. Não tenho sequer noção do que será passar horas a cuidar de doentes e a vê-los morrer todos os dias. E de sair de um turno de demasiadas horas para ver as pessoas na rua a não ter noção do que se passa ali dentro...

Toni tinha um filho a caminho e uma carreira musical. No panorama atual, os artistas são o resto, os últimos dos não essenciais. Esses loucos que sonharam viver a fazer-nos rir e chorar, que nos dão música, luz, cor e emoção aos dias, que vivem na corda bamba sem rede, viram as portas fecharem-se, as salas vazias... Quando mais precisamos de ânimo e alegria, a arte, seja ela qual for, é vetada ao desprezo, à solidão, à frieza de uma guerra silenciosa onde só importa sobreviver, e é cada um por si, mesmo que todos estejam a fazer o melhor que sabem e podem.

(Entre a “essencialidade” das profissões da Alice e o Toni, há milhares de mulheres e homens que no início deste ano tinham as vidas orientadas e que hoje estão mal, que estão a recorrer a instituições para ter comida na mesa...)

Da força que é preciso arrancar das entranhas para se acabar com a vida quando mais nada faz sentido não sei nada. Sei que não teria coragem de viver a ver gente morrer todos os dias, ou de me sentir inútil porque o único dom que tenho é fazer pessoas felizes e isso está-me proibido, por isso não me falem em fraqueza. Falem do cansaço, do desespero, da falta de apoio, da desilusão que é vermo-nos desvalorizados quando estamos a dar tudo na nossa missão de vida.

sábado, 10 de outubro de 2020

Reinício

Num ano atípico, como já nos habituamos a chamar-lhe, decido recomeçar.

O meu próprio novo normal. Sem rede de segurança, sem respostas para muitas perguntas, mas com muitas certezas também.

Quando todos descobrimos que afinal é possível parar o mundo, por que não acreditar que é possível - e desejável - que se recomece, que se viva o que importa, que mesmo na maior tragédia há alguma coisa a aprender? O cliché mais batido, "a vida é curta", faz mais sentido do que nunca. Não se trata de uma epifania ao acordar, ou de um choque que me faz redefinir prioridades. É uma certeza que vem de longe, que foi crescendo, foi sendo calada pelos dias menos maus, e que ganhou vida própria num dia menos bom. Há quem lhe chame coragem, outros chamam-lhe loucura, irresponsabilidade, egoísmo. Seja isso tudo, que é bem preciso de vez em quando. Se no fim da tempestade está o arco-íris, vai tudo correr bem.

Mantenho e cultivo quem vale a pena, foco em mim depois de uma vida anulada, sem rumo ou coração. Levo o que mais importa, mas recomeço em chão novo, com muitas fendas para remendar e muros para saltar. Sem olhar para trás.

The one that got away

Patamar de um dos blocos de salas de aulas no liceu. 16 anos. Concerto da banda de alguns alunos, de que todos eramos fãs, obviamente. Um el...